Sunday, April 20, 2008

Victor Hugo - Os Miseráveis (Cap. XX - Os mortos têm razão e os vivos também)

"[...] Só sujeitando-se a qualquer eventualidade é que a utopia se transforma em insurreição, de protesto filosófico se converte em protesto armado e de Minerva em Palas. A utopia que se impacienta e se torna revolta sabe o que espera; normalmente vem cedo demais. Quando assim sucede, resigna-se e estoicamente aceita a catástrofe em vez do triunfo. Serve sem se queixar e até desculpando os que a renegam, e a sua magnanimidade consiste em sujeitar-se ao desamparo. É indomável contra o obstáculo e dócil para com a ingratidão.
Mas tratar-se-á realmente de ingratidão?
É, em relação ao gênero humano.
Não é, em relação ao indivíduo.
O progresso é próprio do homem. A vida geral da humanidade chama-se Progresso. O Progresso marcha, faz a grande viagem humana e terrestre para o celestial e o divino; tem os seus lugares de passagem, onde reúne o rebanho desgarrado; tem estações onde meditar diante de alguma Canaã, desvendando de súbito o seu mistério; tem as suas noites em que dorme, e é uma das pungentes ansiedades do pensador ver como a escuridão envolve a alma humana e anda às apalpadelas por entre as trevas, procurando, sem conseguir despertá-lo, o progresso adormecido.
"Decerto Deus morreu!" , disse um dia Gérard de Nerval a quem estas linhas escreve, confundindo o progresso com Deus e tomando a interrupção do movimento pela morte do Ser Supremo.
Não desesperemos contudo. O progresso desperta infalivelmente e em síntese quase poderíamos afirmar que ele marcha, mesmo ao dormir, à vista do seu incremento. Assim que o vemos de pé, logo nos dá idéia da sua elevada estrutura. Permanecer sempre tranqüilo é uma coisa tão impossível ao progresso como ao rio; não lhe ponham obstáculos, não lhe joguem pedras que lhe impeçam o curso; o obstáculo faz escumar a água e agitar a humanidade. Daí nascem certas perturbações é que se percebe o caminho andado. Enquanto a ordem, que nada mais é do que a paz universal, não se achar definitivamente estabelecida, enquanto não reinarem a harmonia e a unidade, o progresso terá revoluções por etapas.
Que é, portanto, o progresso? Já há pouco o dissemos: a vida permanente dos povos...
No entanto, acontece por vezes que a vida momentânea dos indivíduos opõe resistência à vida eterna do gênero humano.
Confessamo-lo sem ressentimento, o indivíduo tem seu interesse distinto e pode sem culpa transigir com ele e defendê-lo; o presente tem uma perdoável dose de egoísmo; a vida momentânea tem o seu direito e não é obrigada a sacrificar-se continuamente ao futuro. A geração atual, como as que a precederam, não é obrigada a apressar-se em relação às vindouras, que, afinal, não passam de suas iguais. “Eu existo”, murmurava esse alguém chamado Todos. “Sou jovem e amo, sou velho e quero descansar, sou pai de família, trabalho, prospero, sou bem sucedido nos meus negócios, sou proprietário, sou credor do Estado, sou feliz, tenho mulher e filhos, amo tudo isso, quero viver – deixem-sme sossegado.” Daí em certas ocasiões se verificar um frio profundo nas magnânimas vanguardas do gênero humano.
Para além de tudo isso, devemos concordar, a utopia sai da sua esfera brilhante para fazer a guerra. Ela, a verdade de amanhã, socorre-se dos mesmos meios que a mentira de ontem – a batalha. Ele, o futuro, procede como o passado. Ela, a idéia pura, converte-se em via de fato. Envolve-se no seu heroísmo uma grande dose de violência, pela qual é justo que responda, violência de ocasião e de expediente contrária a todos os princípios e pela qual é fatalmente punida.
A utopia-insurreição combate com o antigo código militar na mão; fuzila os espiões, executa os traidores, aniquila seres vivos e arremessa-os às trevas desconhecidas. Serve-se da morte, o que é grave. A utopia parece já não ter fé no esplendor, sua força irresistível e incorruptível. Fere com o ferro. Ora, nenhum ferro é simples. Toda espada tem dois gumes: quem ferir com um fere-se a si mesmo (pleonasmo?!) no outro..."

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