Indigente
Vou correr contra o tempo. Não consigo sorrir para esse sofá monótono e inútil. Quero ganhar o asfalto; mal sei atravessar as ruas.
- Mãe, quanto trânsito e poluição! A gente vive trabalhando! Ah, eu queria viver no campo com as vaquinhas!
O espelho retrovisor tenta me comover.
"Por que é que eu preciso ter pena de mim? "
Não sei se combino com o urbanismo. Às vezes tenho vontade de não comer nada, ficar pálida e com olheiras monstruosas: gosto de parecer inacessível. É uma força que faço para que não me incomodem.
"Hã? Hum? Falou comigo?"
"Menina desligada!"
"É, ahn!"
Volto ao momento em que me vi tão desprendida. A calça nova já velha, preta e desbotada, um andar solto, os tênis frouxos. Carrego poucas moedas. É tudo o que tenho.
"Um ladrão passaria reto por mim."
Não tenho nada. Só uma sprite, que pareceu combinar com meu espírito (a propaganda não é cruel). E tenho uma boa alma, ah! Mas isso ninguém rouba. Um ladrão passaria reto por mim. Talvez até zombasse, ora essa! Eu só tinha minhas moedas!
Vi-me assim. Soltei as moedas: dormiram no chão. Sorri para a vida.
"Ah, meu Deus! Essa vida é boa. Eu não entendo nada, não sei de nada, sei só enrolar o tempo. Sei também fingir que sou feliz."
Não havia nada que eu desejasse. Desejar implica desgaste. Eu sabia até aceitar que um dia poderia não mais ter o amor que me move, tanto amor já me moveu... morreu. Eu sei rir. Sou feliz com minhas moedas. Sei gozar com devaneios. E não preciso de um outro ser. Sei viver como um vagabundo na calçada. Gosto de chorar mágoas vendo o Sol nascer. A vida é bonita, para quem sabe se enganar. O homem dos papéis, todo sujo, todo riso... Riso que corta, riso que me cortou. Riso que me diz:
- A vida é boa, menina!
Riso que conforta-se. E conserva vida.
"A vida é boa!"
Meu sorriso é todo lágrimas. A vida é injusta com esse homem.
Nunca vou me esquecer daquele riso.