Sunday, February 17, 2008

Excertos de "Quem ama não adoece" - Dr. Marco Aurélio Dias da Silva

A angústia dos primeiros anos

"[...] A explosão inegavelmente violenta do aconchego do útero materno constitui nosso grande e primeiro trauma. Há quem tenha dito - e provavelmente está correto - que temeríamos mais o nascimento que a morte, se dele tivéssemos consciência.
Para Melanie Klein, a dolorosa experiência do nascimento tem o efeito de conferir ao mundo externo um aspecto hostil e de voltar contra ele, e tudo que o intriga (inclusive o seio materno, de fato o mais importante e primeiro objeto externo), os instintos de defesa e destruição do bebê. O sofrimento (angústia) criado por essa ambivalência - necessitar (amar) o seio materno e querer destruí-lo (odiar), ao lado do temor da perda, pela consciência de sua necessidade vital - será certamente a raiz maior de nossa insegurança, de nossos medos, da luta, que desde então se instala em nosso interior, entre os instintos da vida e da morte.
[...] Por volta do 8º mês de vida, no entanto, o grau de maturidade do sistema nervoso começa a possibilitar ao bebê a percepção do mundo externo como algo separado de si próprio. Por conseguinte, dá-se o estabelecimento de vínculos afetivos, entre eles o reconhecimento da figura materna como fonte de satisfação e segurança. Mas, se por um lado há esse reconhecimento, por outro se instala também, no espírito do bebê, a consciência de que a mãe - ou quem lhe faça as vezes - é um outro ser - separado dele.
A descoberta dessa separação, dizem os psicanalistas, provoca no bebê uma sensação de perda e frustração, traduzida em angústia e dor psíquica. A tal frustração, que seria universal, dão os psicanalistas o nome de "angústia de separação". Instala-se a partir daí uma sensação de desamparo e insegurança que nos acompanhará por toda a vida, gerando uma necessidade vital de aconchego, carinho e amor que passam a constituir - mesmo que nem todos tenham consciência disso - a principal aspiração de nossa vida e uma condição indispensável para a felicidade e a saúde.
Do que foi exposto, creio ter ficado claro ao leitor que da angústia de separação todos padecemos, bem como de suas conseqüências. O que seria "normal" e universal complica-se, no entanto, quando a dor psíquica por ela gerada ultrapassa a capacidade da estrutura emocional da criança de absorvê-la e com ela conviver. Isso pode ocorrer, seja porque o bebê tem sua estrutura emocional mais frágil por determinantes genéticos, independendo pois do grau de zelo e amor maternos, seja por real ausência, inadequação ou incapacidade da mãe (ou de quem lhe faça as vezes) de transmitir presença, afeto e segurança.
Para fazer face a esse nível intolerável de angústia, a criança reage desenvolvendo um conceito grandioso e hipertrofiado de si mesmo ou uma imagem idealizada de perfeição absoluta. Em quaisquer dessas hipóteses, ressalta Sampaio "o que vai marcar essa personalidade será a impossibilidade de estabelecer qualquer tipo de relação em que veja o outro que não a si próprio." Será, pois, uma personalidade 'narcisista', com grandes dificuldades de estabelcer vínculos afetivos, voltada para si mesma e, paradoxalmente, bastante insegura quanto ao próprio valor.
A "angústia da separação", não é, contudo, a causa única dessa insegurança. A partir dela, isto é, a partir do momento em que a criança vai tomando conta de que o mundo não se concentra nela mesma e vai tomando contato com os outros, começa também o caminho de seu crescimento e desenvolvimento como pessoa. Lógico que as peculiaridades e potencialidades individuais, ligadas ao padrão genético de cada um, serão importantes. Mas, em meu modo de ver, de importância maior será a influência do contato com os adultos que cercam a criança [...]"


O medo da felicidade

"[...] Algo parecido, já dissemos acima, ocorre com o bebê em relação ao seio materno: tanto dele necessita, tanto teme perdê-lo, que chega a lhe ser hostil por reconhecer seu poder de causar-lhe sofrimento. Gikovate descreve esse medo como uma "sensação de iminência de catástrofe que sempre acompanha nossos momentos mais felizes." [...] É como se, no fundo, não nos julgássemos merecedores daquela felicidade. Ou seja, não conseguimos vivenciá-la sem culpa, mesmo que uma culpa inconsciente. E vivida com esse sentimento de culpa, a felicidade se esvai, não existe.
[...] a felicidade seria pura e simplesmente a ausência de sofrimento. Lembro, a esse respeito, a citação de Goethe, segundo a qual "nada nos é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos."
[...] Essa relação que tento estabelecer - entre felicidade e morte - já foi notada por outros autores e fica bem evidente na expressão "podia morrer agora" que muitas vezes empregamos nos momentos felizes. Talvez quem melhor resumiu a ambivalência e a angústia que a felicidade pode provocar tenha sido o pensador espanhol Julian Marías, quando disse que "a felicidade é extremamente vulnerável. Ela é um risco, e só como risco deve ser assumida."

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